Bob Dylan em versões: Péricles Cavalcanti, Fausto Nilo e Chico Amaral – por Diego Garcia
O seguinte artigo é a compilação das três entrevistas que tive o privilégio de fazer com os compositores Péricles Cavalcanti, Fausto Nilo e Chico Amaral a respeito das três mais magistrais versões do cancioneiro do Bob Dylan em língua portuguesa no seu formato canção.
As versões, não raras vezes, são desdenhadas, relegadas a algo menor. Bob Dylan fez uso de uma prática comum e, até mesmo aceita, no mundo do blues e do folk que é o empréstimo. Segundo alguns estudiosos, foi justamente essa técnica da apropriação que um músico fazia de trechos de letra, ou de uma frase melódica aqui outra ali o responsável por ter mantido a salvo certas canções que, do contrário, teriam se perdido, visto que a quase totalidade dos blueseiros e músicos do folk não anotavam as suas composições, já que não dominavam a técnica da anotação em partitura.
A canção que catapultou a carreira do jovem Robert Zimmerman foi exatamente um exemplo disto; Blowin’ In The Wind é, na verdade, uma adaptação de uma canção do tempo da Escravidão chamada No More Auction Block. “Auction block” era o nome dado à plataforma elevada na qual os escravos à venda ficavam expostos durante o leilão. Em pé, e expostos aos compradores, eles poderiam ser mais bem avaliados e negociados. Dylan aproveitou a mesma melodia, inserindo uma letra com uma temática mais atual, e, convém também creditar, um refrão que não havia no original. Importante salientar que Dylan nunca negou os tais empréstimos, como tão bem escreveu Daniel Mark Epstein, as canções do Dylan viajam “no chassi de uma velha melodia” embora “as palavras, o tema e a estrutura eram estranhos” (Epstein, 2012, p. 35). Dylan se intitulava “um expedicionário musical”, para quem os direitos de propriedade eram provisórios (Epstein, 2012, p. 74). Dylan voltaria a essa técnica do palimpsesto diversas vezes ao longo da carreira: Hard Rain’s Gonna Fall e suas semelhanças com Lord Randal, With God on our Side ecoando Patriot Game do Liam Clancy, I Dreamed I Saw St. Augustine lembrando Joe Hill do Robinson & Hayes, e Girl From the North Country e suas claras referências ao Scarborough Fair são apenas alguns dos casos mais conhecidos.
Traduzir mantendo o andamento melódico da canção e ainda assim não destoar da narrativa não é, de modo algum, uma tarefa fácil. O fato dos tradutores serem também compositores diz muito quando se leva em conta o resultado excepcional de cada versão. Traduzir a palavra impressa, inanimada, aquela palavra presa ao papel é uma coisa, já traduzir esta mesma palavra para o formato da canção, em que a palavra flutua e rodopia no ar, é algo bem distinto.
Um detalhe que a mim chamou muito a atenção foi o espanto que muitos tiveram ao saber que tal ou qual canção era, na verdade, uma versão. O tal “espanto” é, a meu ver, um indício de uma tradução bem-sucedida de uma canção, visto que o ouvinte não tivera nenhum estranhamento ao ouvir a versão, o fato da versão conseguir manter certa naturalidade da prosódia conta muito a favor da mesma, ela não fica soando como uma mera transposição de uma língua a outra, mas é capaz de captar nuances que fazem com a canção pareça ter sido feito, desde a sua concepção, em língua portuguesa. O maior desafio daquele que traduz uma canção é que seu trabalho final não soe como uma paródia, sendo ou diminuída a categoria do risível ou odiada como uma afronta ou heresia que macula a obra original do artista.
As versões aqui tratadas trazem o curioso aspecto de que são entoadas, cada qual, com um sotaque típico de uma região do Brasil, e tanto os compositores quanto os intérpretes contribuem para que tal cor local ressoe. A dupla Caetano e Péricles entregaram a sua versão à voz de Gal Costa, imprimindo um colorido todo baiano a letra de It’s All Over Now, Baby Blue, já os versos de Fausto Nilo para Romance In Durango são entregues ao conterrâneo cearense Raimundo Fagner, fazendo o cenário western do Dylan soar como um cordel de cangaço, ao passo que Chico Amaral deixa a cargo dos seus patrícios a tarefa de fazer o Dylan soar mineiro na sua tradução de I Want You.
It’s All Over Now, Negro Amor
Péricles Cavalcanti (que assina junto com Caetano a versão de Negro Amor) morou na Europa alguns anos. Assim como muitos outros, Péricles se auto-exilou, primeiramente na França a partir de 1969 e depois em Londres. Segundo a sua página pessoal na Internet, com um violão e uma gaitinha de boca, no estilo Bob Dylan, tocou nos metrôs e cafés de Paris enquanto o dinheiro, enviado pela esposa, não chegava. “P’ra você que me pergunta / Porque estou nesta cidade / Sozinho, com um blues ao violão / Eu digo na verdade / É só por necessidade / Pois preciso da passagem de avião / P’ra voltar pr’uma garota” cantaria ele, anos mais tarde, em Blues da Passagem.
Se levarmos em conta o fato de que a versão fora feita em um período em que a pesquisa era demorada e onerosa, sem os recursos tecnológicos que facilitam a busca de dados dos dias atuais, Negro Amor é um resultado notável. A dupla brasileira juntou “tudo que […] conseguiu por coincidência” e lapidou uma versão que é até hoje a mais magistral das canções dylanianas vertidas para o português.
Péricles conta que a versão foi escrito provavelmente em 1975, na época em que moravam no Rio de Janeiro. Ele e Caetano intencionavam, inicialmente, incluir a canção no álbum Pássaro Proibido da Maria Bethânia que Caetano estava produzido, ou pelo menos, acrescentá-la nos shows que promoviam o álbum. “Acabou que Bethânia não a incluiu no show” e durante a turnê dos Doces Bárbaros, em 1976, Gal conheceu a canção e decidiu gravá-la no ano seguinte.
A versão é “quase uma tradução literal, o conteúdo é praticamente o mesmo” relembra Péricles. “A gente fez rápido, um acabava a frase do outro, às vezes, uma frase inteira de um, uma frase inteira de outro. Era uma música que a gente gostava muito e já conhecia há bastante tempo. Eu conhecia bem o disco Bringing It All Back Home, e ele me chamou por isso”.
Algumas curiosidades, tais como o veto do próprio Dylan ao título da versão em português já valem ser inclusos no anedotário da música brasileira. No início dos anos 90 quando Zé Geraldo decidiu regravar a canção, tanto a gravadora quanto os compositores foram informados, para o espanto geral, de que a versão nunca fora autorizada. Ou seja, desde o seu lançamento em 1977 no álbum Caras & Bocas até 1994 nem Péricles, nem Caetano, recebeu um centavo sequer de royalties pela versão. “É uma das músicas mais gravadas, minhas e do Caetano, sendo que não é nossa. Essa é a ironia. Não ganhamos nada nestes quinze anos em que a gravação da Gal tocou nas rádios e televisão”. Quando, de fato, a versão chegou as mãos de Dylan para a sua apreciação, ele “aprovou a letra inteira, mas não aprovou o título”, por razões óbvias.
Desde a década de 1950 e 1960, alguns líderes negros norte-americanos, notadamente Malcolm X, opôs-se ao termo “negro” pela associação da palavra a longa história da escravidão, segregação e discriminação aos afro-americanos, e é a partir desse ponto que o termo “black” passa a ser cada vez mais comum, tendo sido, inclusive, adotado no Brasil ainda nos anos 70. O belíssimo documentário I Am Not Your Negro sobre a vida dos três mais significativos líderes dos direitos civis dos Estados Unidos dos anos 60 ilustra bem o quão pejorativo tinha se tornado o termo. Portanto não causa espanto a rejeição que Dylan teve ao título e refrão da versão. O problema é que o tal pedido de autorização e consequente rejeição foram feitas tardiamente. “Dylan não podia fazer nada porque tinha a gravação da Gal e fizeram a edição porque já tinha uma gravação, ou seja, eles não puderam nem vetar porque já tinha um fato, que era a gravação da Gal”.
O vocábulo “negro” carrega, portanto, certo conteúdo semântico muito óbvio ao falante de língua inglesa, principalmente aos norte-americanos, que não teria ocorrido aos compositores brasileiros. A palavra, comenta Péricles, “é muito sintético, tem sentido de ovelha negra, aquele que é mandado embora”. Péricles conta que a dupla estava, na verdade, empacada justamente no refrão e nas suas associações cromático-semânticos, já que o termo “blue” remete, na língua inglesa, a um estado melancólico, ao passo que na língua portuguesa o termo “azul” é associado a alegria. A solução ao impasse foi sugerida pelo Guilherme Araújo, empresário à época do Caetano, ao lembrar que blue ou melhor, blues remete a música negra. O título encontrado e sugerido por Araújo é de tal modo perfeito que fica quase impossível imaginar outra combinação de palavras que possa mimetizar tão bem a atmosfera da canção original caso a dupla tivesse sido obrigada a mudá-la.
A dupla, embora tenha escapada da censura do autor original da canção, não teve tanto sucesso com a censura local. Na letra inicial da versão, um trecho não passou despercebido pelos censores do Regime; o verso “soldados desarmados” teve de ser remodelado para “guerreiros desarmados”, o que, de certa forma, deixou a letra, em português, até mais próxima ainda do seu original ao escolher uma palavra que se mantivesse no campo semântico das narrativas clássicas como Odisseia do Homero, visto que “seasick sailors […] rowing home” (marinheiros mareados que remam de volta ao lar) parece ressoar melhor na palavra “guerreiros” do que em “soldados”.
Deserto de Durango
O arquiteto que se notabilizou pelos projetos do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, a Praça do Ferreira e a Ponte Metálica entre outras obras urbanísticas é também um talentoso letrista. Cearense de Quixeramobim, Fausto compôs mais de 300 canções com mais de 100 diferentes parceiros. Arranjando uma folga na sua atribulada agenda Fausto Nilo concedeu uma entrevista em que discorre sobre seu processo de criação.
Diego: A versão Romance no Deserto apresenta diversos pontos em que a transposição do cenário original (a região árida do oeste norte-americano) e a dos protagonistas é magistralmente transposto para o sertão do nordeste brasileiro, só para citar alguns, por exemplo, “hot chilli peppers” é substituído por “eu tenho a boca que arde como o sol”.
Fausto Nilo: As versões nem toda vida funcionam como simples traduções e isto é farto na MPB. Elas, às vezes, demandam adaptações culturais e de prosódia, no novo idioma, que façam a letra “cantar” com resultado equivalente ou aproximado do efeito original. Muitas vezes elas revelam soluções até engraçadas, por conta disto. Às vezes não, uma letra se mantém quase que traduzida, como no caso de letras populares originais escritas em espanhol.
Diego: Outro caso desta transposição magistral é “past the aztec ruins” que é trocado por “vejo cidades fantasmas e ruínas”, em que não há como não lembrar as reportagens das cidades (do nordeste) engolidas pelas areias.
Fausto Nilo: É algo de procedimento poético similar, no entanto buscando as mesmas percussividades internas à frase original, porém adaptando a imagem para nosso melhor entendimento. Na realidade tirei a história do México fronteiriço e levei para um Brasil recém-urbanizado.
Diego: O “no sol do teu pensamento” nos faz recordar Othon Bastos no cartaz do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol (do Glauber Rocha).
Fausto Nilo: Sou originário dos penetras em clubes de cinema da segunda metade dos anos sessenta. Dessa forma, política estudantil, arquitetura, urbanismo e assim Glauber, inevitavelmente se revela em nosso cotidiano poético, ainda.
Diego: Outro exemplo é “at the corridas” que nos chega como “naquela sombra vou armar a minha rede” na qual a rede amarrada ‘marca o território’ abrasileirada da versão.
Fausto Nilo: Uma maneira universalizada, mesmo a partir do regional ‘rede’, para falar de um viajante romântico, livre e bandoleiro em trajetórias, também perigosas, que explodem e se divinizam no final. Isso funciona no universo brasileiro. É claro que eu explico isso, mas não faço com tanto método assim e o produto vem mais da intuição com tendência a ‘escrita automática’, mas sem deixar de distribuir os indispensáveis controles.
Diego : Aproveitando a menção ao filme do Glauber. O casal da versão original cruza, na sua fuga (a julgar pela descrição) a região desértica do Mojave, Nevada ou Arizona. Fogem para o México, onde a lei não os alcançaria. O casal da versão corre em direção ao ‘paraíso’. Na cena final do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, Manuel corre desesperadamente, ao que parece, em direção ao mar. Pergunto, se “a noite é longa e (há) tanta terra”, para onde fogem o narrador/cantador e Madalena?
Fausto Nilo: Este recurso de paisagem-destino idealizada serve a um enredo heroico, cangaceiro e ao mesmo tempo romântico. Isto, curiosamente provocou a afirmação de um apresentador de um programa de rádio interiorano do Ceará: eu, o letrista, teria feito o Romance no Deserto com base em uma história real havida, onde um rapaz cavaleiro roubou uma moça de família sertaneja importante, o que gerou uma lendária perseguição. Outra versão, também maravilhosa.
Diego: O fascínio do Dylan pelo western tem eco no Fausto Nilo pelo cordel e/ou histórias do cangaço?
Fausto Nilo: Acho que sim, mas com bastante distanciamento dos arquétipos, evitando imitar o ‘popular’ e ao mesmo tempo sem perder os propósitos de envolver as pessoas no sonho com sua narrativa, no rumo da popularidade, grande desafio e coisa indispensável numa canção.
Diego: Qual foi a trajetória da canção até chegar as mãos de Raimundo Fagner?
Fausto Nilo: Logo que ouvi essa música tive a ideia de recontar essa história. Pensei no parceiro Fagner como intérprete e dai a adaptação. A letra teve que ser traduzida para os americanos para a autorização. O mesmo que acontece se você faz uma versão dos Beatles ou do poeta Jacques Brel.
Diego: Quem foi/é (se é que há) um Dylan brasileiro?
Fausto Nilo: Acho que não há e isto é compreensível. Mas temos excelentes rapsodos como o grande Zé Ramalho, Fagner e Alceu.
Diego: O que foi a turma do Ceará (também conhecida como a Invasão Cearense) em meados dos anos 70 visto agora (em retrospecto)?
Fausto Nilo: Ao contrário do que muitos possam pensar, era um grupo de compositores do Ceará, única coisa comum entre eles. Nunca tiveram um ideário comum, nem escreveram algum manifesto. Portanto, o grupo nunca teve caráter de movimento, como se dizia na época. Eram compositores, alguns cantores, amigos das mesmas noites típicas dos sessenta, setenta, mas eram super independentes em termos estilísticos e de formação, como se demonstra pela obra de cada um.
I Want You Tanto
Francisco Eduardo Fagundes Amaral é mineiro filho de mãe gaúcha, “eu sou metade gaúcho, metade mineiro” como diz, e sua porção gaúcha ressoa no nome; “carrego um nome bem gaúcho; Fagundes Amaral”.
No início dos anos 1990, o músico mineiro Chico Amaral, verteu de maneira genial a poética dylaniana para o português. A versão faz parte do trabalho de estreia do grupo, também mineiro, Skank. Na seguinte entrevista ele comenta o trajeto que fez para chegar a Tanto.
Amaral: Vou começar nossa conversa com uma frase de Jung citada por Ezra Pound: “Being essentially the instrument for his work, he (the artist) is subordinate to it and we have no reason for expecting him to interpret it for us. He has done the best that is in him by giving it form and he must leave interpretation to others and to the future”.
Diego: Vou começar pelas rimas de I Want You e Tanto.
A rima da versão é quase um espelho da original. Foi algo intencional desde a saída ou foi algo que foste perceber depois de pronto?
Amaral: Foi intencional desde o início. A estrutura de rimas acabou se impondo, em certa medida, à precisão vocabular. É preciso lembrar que a rima é um elemento muito importante nas letras de Dylan. Em alguns versos segui a sonoridade de Dylan: primeira estrofe com rimas em “ais”; “é tanto” para “I want you”; “soubesse” no lugar de “so bad”.
Diego: Interessante algumas das opções feitas ao longo da tradução, o “saviour” virou “profeta”, enquanto que o “dândi” dispensou seu “Chinese suit”, mas talvez o trecho que mais chamou a atenção foi trocar o “The drunken politician leaps upon the street where mothers weep” que sempre me remeteu aos engravatados de Washington tentando consolar mães de combatentes tombados na longínqua guerra do Vietnã. Sabendo que tal referência não faria muito sentido ao ouvinte brasileiro, considerei acertada a adaptação de colocar os políticos embriagados a dançarem em guetos arruinados, em que gueto, para nós, brasileiros faria mais sentido.
Amaral: Para “saviours who are fast asleep” usei “profetas desacordados”, tentando manter o contra-senso da imagem. Sobre os políticos embriagados que saltitam (na rua onde mães choram) lembro-me de ter visto a mesma imagem em outro texto de Dylan, creio que na contracapa do LP Planet Waves. Sem citar as mães que choram, acho que a versão traz o impacto político desejado.
Diego: Em I Want You, as imagens passam como sombras em uma rua, como se você estivesse indo ladeira abaixo, acompanhando a linha do baixo descendente. O saltitante tom circense do teclado na abertura, descrito pelo radialista Jeremy Vine Radio BBC como tendo uma “melodia envolto em lantejoulas … toda saltitante e feliz.” e o riff da guitarra que abre a canção original tornaram-se um clássico instantâneo. A forma como os acordes são estruturados, tencionando até que o refrão a liberta não foi aproveitado no arranjo do Skank (pelo menos, não na versão de 1992, embora a versão de 2001 se aproxime mais da versão Blonde On Blonde. Curioso perceber que o próprio Dylan re-trabalhou I Want You a ponto de deixá-la irreconhecível no out-take do seu MTV Unplugged). Pergunto quais foram os critérios na hora de fazer o arranjo? O arranjo de algum modo tentou dialogar com a nova letra em português?
Amaral: Por mim, o arranjo seria mais fiel à versão de Dylan. O primeiro seguiu a estética reggae predominante naquela época para o Skank. Concordo com você que o segundo se aproximou mais do original. Os arranjos foram escolha da banda, eu não opinei. Ainda assim, escrevi a parte dos metais.
Diego: A canção é um poema de desejo romântico. O arranjo parece impulsionar o cantor (através de um mundo de estranheza), a cada refrão, de volta a mulher que ama.
Em uma entrevista à Playboy de 1966, Dylan comenta que “Não são apenas palavras bonitas a acompanhar uma melodia … são as palavras e a música, juntas … eu consigo ouvir o som do que eu quero dizer”. I Want You, uma das mais enigmáticas e surreais letras do Blonde On Blonde, tem um estranho elenco de personagens, numerosos demais para habitarem confortavelmente três minutos de canção, incluindo um “Guilty Undertaker”, um “Lonesome Organ Grinder”, “Weeping Fathers”, “Mothers’, “Sleeping Saviors”, uma “Queen of Spades” e finalmente o “Dancing Child” e seu terno Chinês. Alguns personagens como “Dancing Child” fazem referência (de acordo com Andy Gill no seu livro Classic Bob Dylan: My Back Pages) ao Brian Jones (“time was on his side” sendo uma menção ao primeiro hit dos Stones nos EUA). A adaptação para o português foi magistral, optando deixar um personagem ao excluir outro. Como foi o processo?
Amaral: Concordo. Gostaria de utilizar o máximo possível de imagens. Questões de métrica e a estrutura de rimas me obrigaram a certos empobrecimentos. O que me levou a fazer a versão de I Want You foi a paixão que a gravação de Dylan me despertou. Foi principalmente através dessa música e de Like a Rolling Stone que eu cheguei nele. A primeira transcrição que li saiu no jornal/revista Rolling Stone, no início dos anos 70, um trabalho da jornalista Ana Maria Baiana. Eu já gostava da música sem conhecer a letra. Conhecer seu texto foi muito impactante. Fiquei impressionado, por exemplo, com o verso “blow into my face with scorn”. Adorei o emprego da palavra “escárnio” numa letra de música. Você escreveu que a canção é um poema de desejo romântico. É isso. O Dylan foi muito hábil em contrapor imagens raras com um refrão bem direto. As três rimas A seguidas de B também dão uma força incrível à canção. A interpretação é sensacional. Não conhecendo direito, naquela ocasião, muitos outros trabalhos dele, formei uma imagem juvenil que me acompanha ainda: Dylan é um trovador do século XX, da grande cidade e dos grandes espaços americanos. Pertence à tradição de rebeldia de um Thoreau, de um Walt Whitman, de um Jack London. E a poesia dele tem um pé no século XIX, na poesia romântica. Ele costuma citar o Keats como uma de suas principais admirações.