Published on abril 1st, 2014 | by Katia Suman
0Portulegal # 72 – Penicos de Prata – Carlos de Azevedo – 30.03.14 – radioeletrica.com
PENICOS DE PRATA é um quarteto de cordas e vozes que compõe para textos eróticos e satíricos da literatura portuguesa que sobreviveram a uma moral católica que olha para a sexualidade como uma vertente menos nobre do ser humano. Havia em Portugal uma censura férrea que mutilava indelevelmente os textos considerados mais ousados e mesmo hoje ainda paira o fantasma da Inquisição, que mesmo já extinta era (e é) ainda onipresente no psíquico social, incutindo o medo e inibindo os recalcitrantes. Mas aquela conjuntura de repressão ideológica tinha um revés: tornava apelativa a transgressão! Ousar trilhar a senda do proibido, transgredir era, obviamente, um apelo excitante para os escritores, uma maneira salutar de se afirmarem na sua plenitude e um imperativo categórico. Os Penicos põem a nu este lado mais sacana da poesia lusa, com arranjos de qualidade musical superior, num espetáculo recheado de humor, erotismo, sátira e crítica, que expõe e perdoa, com inu sitada malícia e benevolência, a todos nós, pecadores! A maior parte dos poemas musicados em 2013 pelos Penicos de Prata foram publicados em 1966 na valiosa <i>Antologia de poesia portuguesa erótica e satírica</i>, da poetisa Natália Correia, que fizera uma extensa pesquisa bibliográfica, desde autores contemporâneos seus até os trovadores medievais, deles recolhendo cantigas de escárnio e maldizer. Tratava-se dos mais importantes nomes do trovadorismo galego-português. Com Martim Soares, Afonso Eanes de Coton e Pero da Ponte se abria o volume, que não deixava de visitar Gil Vicente e Luís Vaz de Camões – cuja presença, aliás, se concretizava pela inserção no volume de trechos de Os Lusíadas, o que tornou ainda mais duro o golpe que, a partir da mais elevada tradição portuguesa, Natália desferiria no puritanismo repressivo institucionalizado pelo regime salazarista. A edição do livro foi apreendida e proibida pela PIDE, a polícia fascista. Na tália Correia e alguns antologiados que estavam vivos foram presos e condenados. A Antologia “maldita” de Natália só seria republicada 33 anos depois, em 1999.
Como escrevia David Mourão Ferreira no prefácio da primeira edição (1966) da Antologia de Natália Correia: “Não ter medo das palavras e não recear as realidades que elas exprimem, é, sobretudo, evitar o trânsito pelo consultório do psiquiatra. Os maiores dos nossos poetas conheceram, desde sempre, essa forma terapêutica. Difundi-la, eis o que importa; eis o que pode contribuir, de maneira decisiva, para encaminhar muita gente nessas ou noutras vias de redentora libertação”.
Trechos do prefácio do escritor Liberto Cruz ao Livro-CD “Música e poesia erótica satírica portuguesa”, dos Penicos de Prata (2013):
“Desde o aparecimento dos primeiros cancioneiros medievais que a poesia dita brejeira, burlesca, satírica, erótica, etc., consoante o tempo e o modo em que foi concebida, tem atraído, amiúde, os bardos nacionais, com um entusiasmo e um deleite que prova ser estimulante tanto para os seus autores como para os seus utentes. E é curioso verificar que esta poesia tem conquistado cultores entre diversos poetas, sejam eles menores, bissextos ou consagrados. Assim, aos nomes de Gil Vicente, Luís de Camões, Gregório de Matos, Abade de Jazente, Bocage, Guerra Junqueiro, Cesário Verde, Fernando Pessoa, António Botto, Jorge de Senna, Natália Correia, Alexandre O´Neill e Maria Teresa Horta, poderíamos incluir os poetas aqui presentes e acrescentar outros tantos, menos conhecidos talvez, mas afinando com rigor pelo mesmo diapasão.
Dir-se-ia não haver poeta que resista ao envolvimento, ao fascínio, à experiência e ao desafio, liricamente ou não, de dar a sua achega pessoal para a exaltação de versos outros; versos, no fim de contas, mais naturais, mais evidentes, mais vitais e ao alcance de todo o ser humano, sem desprimor da sua formação ou da sua disponibilidade intelectual. Seria contudo, errado pensar que esta poesia é válida ou subsiste devido ao seu imediatismo, ao seu declarado sentido ou ainda, ao seu avesso à tradição. A poesia é só uma, como decretaram há muito os fazedores das liberdades poéticas, que se esqueceram, no entanto, de acrescentar ser ela acessível e receptiva, sempre, a todos os malabarismos da palavra e da mente. Para mais sabendo nós, hoje, que à poesia um estado de alma, se afirma a poesia um estado de um corpo, de um corpo. Daí que se tornem fundamentais a concepção e a exposição da narrativa, e nunca a abordagem feita, a matéria revelada. […]
Nada há a declarar na alfândega literária: nua e crua se expõe a poesia, porque a liberdade da escrita, neste caso da liberdade poética, só assim será viável, só assim será natural. Trânsitos distintos e bem diversos são propostos pelos autores insertos nesta escolha feita por Penicos de Prata. Astuciosamente e inteligentemente o quarteto soube aproximar-se da palavra estática, do texto em repouso e da subtileza subjacente dos poemas e deu-lhes um movimento, um som e uma cor notáveis e impressionantes. Através da música e da declamação, adaptadas com verve e panache, os Penicos de Prata encontraram para cada campo poético um marco de hilariante paródia que se torna tão falsamente sisudo quanto alegremente compincha: e tudo sem rodeios, sem rodriguinhos, sem subterfúgios.
A palavra, a fala, a música e a ilustração interpenetram-se e saudam-se maliciosamente a cada passo, numa cumplicidade desassombrada, sem tabus, sem melindres, servindo-se de uma sadia naturalidade, de uma alegre e séria comicidade. Tão ajustado e firme o cenário se desdobra, e irrompe entre o som expresso e a palavra proferida, que a imagem resultante é trabalhada a ouro e a prata burilada. ” (Liberto Cruz)
Penicos de Prata:
OS MÚSICOS: André Louro (violão e voz), Catarina Santana (cavaquinho e voz), João Paes (violoncelo e voz), Eduardo Jordão (contrabaixo e voz); participação dos cantores líricos Catarina Molder e Rui Baeta.
OS POETAS: Fernando Pessoa, Adília Lopes, António Botto, Liberto Cruz, Ana Abel Paúl, Bocage, José Anselmo Correia Henriques, João Vicente Pimentel Maldonado, António Maria Eusébio (O Calafate), Carlos Queirós, Francisco Eugénio dos Santos Tavares, Antonino Solmer e Ernesto Manuel de Melo e Castro.
Se você chegou até aqui e ainda não perdeu o fôlego com este longo texto, veja os Penicos de Prata em ação aqui: http://www.youtube.com/watch?v=R7FtJ5G0Wuo ou ali: http://www.youtube.com/watch?v=PF2jtJibZu0
Tags: humor, poesia satírica, poesia erótica, Natália Correia, Penicos de Prata
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